Poder Judiciário e a retórica da segurança pública

O papel do Poder Judiciário não é o de militar pela segurança pública, mas o de assegurar a legalidade pública. A diferença é fundamental. Um poder existe para conter o outro. E o juiz, em sua essência republicana, é o guardião do limite. Quando, em nome da eficácia ou do “combate ao crime”, o Judiciário se orienta a partir do discurso do mito da “impunidade”, o risco é perder de vista sua razão de ser: proteger o indivíduo do poder, e não o poder do indivíduo.


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O lugar do freio 
A função judicial é, antes de tudo, contramajoritária. É o freio que impede a política e a opinião pública de ultrapassarem a fronteira da lei. A Justiça não se mede por aplausos, mas por limites. O magistrado é o guardião do intervalo entre o que o Estado quer fazer e o que ele pode fazer. Sem esse intervalo, o Direito se torna apenas mais um instrumento de força.


O deslocamento de sentido

Nos últimos anos, consolidou-se um perigoso deslocamento: o Judiciário passou a ser convocado a atuar como protagonista da segurança pública. Essa expectativa, ainda que bem-intencionada, distorce sua função. Julgar é conter o ímpeto de punir, não o gerir. Quando o juiz assume o papel de combatente, o cidadão perde o juiz, e o arbítrio perde o limite.


A confusão entre legalidade e moralidade

O juiz garante a lei, não o espetáculo. A legalidade é objetiva e impessoal; o moralismo é volúvel e passional. Quando se julga para satisfazer o sentimento coletivo de punição, o processo perde racionalidade e o Estado de Direito se torna refém das emoções. A serenidade judicial é a forma mais elevada de coragem cívica.


A retórica da eficiência 
O discurso da eficiência penal é sedutor. Fala em celeridade, firmeza, resultados. Mas o que parece virtude pode esconder precipitação. O devido processo legal não é obstáculo à Justiça, mas a própria Justiça em movimento. Um Judiciário “eficaz”, mas apressado, substitui a razão pelo juízo de conveniência.


A responsabilidade de dizer “não”
Em uma sociedade marcada pelo medo, o magistrado é muitas vezes cobrado a dizer “sim” a tudo que se apresenta como segurança. Mas o poder de julgar nasce, precisamente, da capacidade de dizer “não”: não ao clamor, não ao improviso, não ao arbítrio. O juiz que mantém a legalidade mesmo sob pressão popular ou midiática não enfraquece o Estado, mas o salva de si mesmo.


O retorno ao fundamento

A força do Judiciário não está em punir, mas em limitar. A legitimidade judicial decorre da fidelidade à Constituição e da proteção das garantias fundamentais. O juiz que cumpre esse papel não é leniente, mas republicano. Sua missão não é e nem nunca foi combater o crime. E, sim, assegurar que a repressão à criminalidade ocorra dentro dos limites da lei.


O poder do limite 
O verdadeiro poder do Judiciário é o de sustentar o limite quando todos os demais poderes o perdem. Num tempo em que a pressa e o medo disputam a pauta da Justiça, é preciso recordar que a função do juiz é preservar o Direito. Porque só há Justiça onde há contenção. Só há liberdade onde o poder é limitado.

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Guilherme Pitaluga

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